Normalizar inadimplência aumenta custo e diminui eficiência do financiamento
A ideia do Fies é simples: toma-se emprestado hoje para pagar amanhã, já que o retorno ao diploma universitário compensa. O empréstimo garante maiores salários e empregabilidade aos beneficiários, permitindo que possam pagar a dívida de forma suave e parcelada ao longo da vida. O risco de inadimplência é baixo, e o governo atua apenas para corrigir eventuais falhas no mercado de crédito estudantil.
Na semana passada, entretanto, foi editada uma MP que transforma o Fies no exato oposto do que se pretende com ele: um programa de baixo retorno e alto risco. A bem-intencionada medida estabelece uma verdadeira anistia das dívidas: renegociação com descontos que podem chegar a 92% do valor devido, abatimento de até 100% dos encargos moratórios e o parcelamento do saldo restante em até 12 anos.
A MP ainda precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado, mas, tomando como base a opinião dos principais presidenciáveis sobre o assunto, o debate tem tudo para ser raso. Afinal, qual o prejuízo para o país? Tem tantos empresários que dão calote, o que custa anistiar os meninos?
No total, o Fies tem a receber dos devedores R$ 123 bilhões, segundo números do mais recente Balanço Geral da União. O montante é expressivo: corresponde a 3,5 vezes e meio o orçamento anual do antigo Bolsa Família e cerca de 1,5 vez o orçamento previsto para o novo Auxílio Brasil. Integrantes do governo argumentam que a medida não tem custo fiscal, pois a MP trata de empréstimos considerados irrecuperáveis. Não é bem assim.
A anistia vai na contramão da proposta feita pelo Conselho de Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas do próprio governo, em relatório de avaliação do Fies divulgado há pouco mais de um ano: “Diante da observação da elevada participação dos alunos Fies no mercado de trabalho formal, mesmo no caso de alunos inadimplentes, a avaliação executiva reforça a necessidade de priorizar a implementação de medidas de recuperação de créditos inadimplentes”.
As análises do relatório mostraram que a taxa de participação no mercado de trabalho dos beneficiários do Fies é relativamente elevada no período de utilização e ainda maior no caso dos contratos já em fase de amortização. E, mesmo considerando apenas contratos inadimplentes (em jan/2019) por mais de 360 dias, cerca de 56,9% dos beneficiários tinham emprego formal em algum momento do ano de 2018 e 84% tiveram carteira assinada entre 2010 e 2018. Com remuneração média de R$ 2.356, as prestações referentes ao Fies correspondem a apenas 13% da renda que advém de empregos com carteira assinada, podendo ser ainda menor considerando demais rendimentos.
Pelas estatísticas, fica evidente que inadimplência não é sinônimo de incapacidade de pagamento. Ao contrário, pode também ser resposta à percepção de que as dívidas contratadas com o governo serão sempre perdoadas. Essa não é a primeira vez que o programa passa por flexibilizações, e inúmeras mudanças já foram feitas ao longo dos anos, as maiores em 2010-2014, período de maior expansão do Fies, mas também em 2020, quando os pagamentos foram suspensos em razão da pandemia de Covid-19.
O perdão das dívidas do Fies gera dois efeitos não desejáveis no mercado de crédito estudantil. Primeiro, uma anistia indiscriminada, que não leva em conta a renda ou a capacidade de pagamento dos inadimplentes, gera incentivos para que todos busquem a renegociação, incluindo aqueles que têm renda para quitar as dívidas. Em condições favoráveis, é melhor seguir inadimplente para ser anistiado no futuro. Por esse primeiro efeito, o custo do programa acaba sendo muito maior do que de fato necessário.
Segundo, se os alunos não arcam com parte dos custos de suas decisões, eles podem acabar tomando mais riscos nas suas escolhas, como, por exemplo, selecionando cursos de baixa qualidade, ou universidades com mensalidades muito altas que não garantem melhores salários após a formatura. Por esse segundo efeito, a efetividade do programa passa a ser menor.
Nessas situações, o receituário econômico é claro: é preciso criar estruturas de acompanhamento e monitoramento dos rendimentos dos beneficiários do programa de crédito, gerar incentivos para que as dívidas sejam quitadas e criar mecanismos para executar garantias e o pagamento das dívidas de quem pode pagar e não o fez. Dito de outra forma, o exato oposto da anistia.
Sem o compartilhamento dos custos com os beneficiários, o Fies volta a se tornar um programa caro e de baixa efetividade. O custo da anistia não é apenas o valor das dívidas não pagas. Ele também está embutido na descaracterização do Fies como um programa que atende prioritariamente alunos pobres sem acesso a crédito, que os incentiva a fazer boas escolhas de cursos e universidade e que tem no pagamento das dívidas a prova concreta de que vale a pena financiá-los. A normalização da inadimplência, ao contrário, traz consigo o risco de inviabilizar qualquer novo programa de crédito estudantil para as gerações futuras.
Fonte: Folha de S.Paulo