Questões sobre racismo, erotização do corpo feminino e Engels tinham sido vetadas, mas voltaram ao exame
Servidores envolvidos na elaboração do Enem 2021 temem sofrer represálias depois do primeiro dia de provas que aconteceu neste último domingo (21). Mesmo com a pressão para que alguns temas fossem suprimidos, as questões abordaram assuntos que incomodam o governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
Nesta segunda (22), o presidente disse que o exame ainda apresentou “questão de ideologia”, mas disse que a prova está mudando. Na semana passada, Bolsonaro chegou a dizer que o Enem estava com a “cara do governo”.
Algumas questões das provas de linguagens e de ciências humanas que mais chamaram a atenção de alunos e professores eram exatamente as que o comando do Inep tentou retirar da prova.
Para o órgão, que é o responsável pela elaboração do exame, as perguntas abordavam temas considerados sensíveis pelo governo. Parte das questões suprimidas acabou voltando ao Enem para garantir um nível de dificuldade calibrado.
A Folha apurou que uma das perguntas retiradas que depois voltou ao exame era a que trazia uma obra do movimento Pop Art, dos anos 1960, com a imagem de uma mulher e fazia uma reflexão sobre a erotização do corpo feminino. Aconteceu a mesma coisa com uma questão que abordou o racismo contra jogadores brasileiros negros na Copa do Mundo de 1950.
Uma pergunta com trecho de um texto de Friedrich Engels, coautor do Manifesto Comunista com Karl Marx, também estava entre as que a chefia do Inep tentou barrar, mostrou o jornal O Estado de São Paulo.
As denúncias indicam que ao menos 20 itens foram suprimidos, a maior parte na prova de linguagens. Todas as alterações feitas, desde a primeira versão da prova até a que chegou aos candidatos, foram registradas em ata. O documento está em sigilo no Inep.
Além de Bolsonaro ter considerado que a prova manteve “questões ideológicas” por abordar temas relacionados aos direitos humanos, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, também disse no domingo que, se pudesse interferir no Enem, algumas perguntas não estariam presentes.
As declarações levantaram preocupação nos servidores, que temem uma nova onda de perseguições já que são poucos os envolvidos na elaboração da prova.
No início deste ano, após a realização do Enem 2020 —devido à pandemia, ele aconteceu apenas em janeiro de 2021—, ao menos três pessoas envolvidas na elaboração da prova foram informadas que não eram mais bem-vindas na função. Outros que permaneceram relatam ter sofrido tanta pressão para não abordar temas considerados inadequados que pediram para mudar de setor.
Já na edição anterior, os servidores eram pressionados a não abordar assuntos que desagradam o presidente. Na prova de 2020, o gabarito da prova sofreu alteração indevida após sua elaboração. As mudanças ocorreram em duas questões que abordavam o racismo.
Apesar de considerarem que a prova foi bem sucedida, atendendo à matriz de conteúdos do Enem e a coerência estatística do exame, há o temor de novas substituições na equipe técnica.
A prova deste ano aconteceu em meio a uma série de denúncias de interferência, censura e assédio moral que levaram, inclusive, 37 pessoas a pedirem afastamento coletivo de cargos de chefia no Inep.
Para professores de ensino médio, as provas do primeiro dia do Enem foram equilibradas e mantiveram o padrão de anos anteriores. Ainda assim, destacaram a ausência de conteúdos e temas importantes, como a ditadura militar (1964-1985).
Desde que o presidente assumiu, o período, que faz parte do conteúdo obrigatório do ensino médio, não foi mais cobrado no Enem. A Folha mostrou que o presidente pediu ao ministro da Educação para que houvesse questões que tratassem o golpe militar de 1964 como uma revolução, o que não aconteceu na edição deste ano.
Também não houve nenhum item que abordasse a questão LGBTQIA+, o que foi destacado como positivo por Bolsonaro nesta segunda. “Vocês não viram mais a linguagem de tal tipo de gente, com tal perfil”, declarou.
Ainda quando era presidente eleito, no fim de 2018, Bolsonaro criticou uma pergunta do Enem que tratava de um dialeto utilizado por gays e travestis. Na época, ele já anunciou que mudaria o exame para barrar questões com esse tipo de abordagem.
Fonte: Folha de S. Paulo