A plataforma Carlos Chagas, fundamental para a operacionalização da ciência brasileira, segue fora ar. Nesta quinta-feira (12), completam-se 20 dias de apagão do sistema.
O governo Jair Bolsonaro ainda não conseguiu normalizar a plataforma após uma falha atingir servidores do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), agência federal de fomento à pesquisa.
O órgão é ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. No sábado (8), foi normalizado o serviço da plataforma Lattes, que gerencia os currículos dos pesquisadores brasileiros. Com a Carlos Chagas ainda inoperante, fica comprometida a continuidade de projetos pelo país, além de serem prejudicadas áreas técnicas do CNPq.
Criada em 2007, a plataforma é a principal interface entre os pesquisadores e o CNPq. Pela Carlos Chagas são operacionalizadas chamadas públicas e editais de fomento à pesquisa e feitos a gestão e o pagamento de bolsas, além de prestações de contas. O tempo prolongado do apagão preocupa pesquisadores.
Cerca de 84 mil bolsistas são financiados com recursos do CNPq. O órgão apoia atualmente 2.201 projetos de pesquisa, segundo dados oficiais.
O CNPq afirmou que todos os prazos foram suspensos e serão prorrogados. De acordo com a agência, não haverá atrasos em pagamento de bolsas.
O pesquisador emérito da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Samuel Goldenberg, do Paraná, diz que o dia a dia da pesquisa nacional tem alta dependência da plataforma. Goldenberg afirma que, sem conseguir acessar, por exemplo, o saldo financeiro de um projeto que coordena, decisões para a continuidade da pesquisa ficam comprometidas.
O projeto citado pelo pesquisador analisa mecanismos da expressão gênica do Trypanosoma cruzi, agente etiológico da doença de Chagas -que leva o nome do sanitarista brasileiro Carlos Chagas, cujo nome batiza a plataforma hoje fora do ar. É também pela plataforma que ocorrem avaliações para financiamento de novos projetos.
“Para a semana que vem estava programado o julgamento para financiamento de eventos científicos. Com o sistema represado, para tudo”, diz Goldenberg, que faz parte do comitê assistente de genética do CNPq, responsável por avaliar propostas.
Pesquisadores temem ainda a perda de dados. “Ali [Carlos Chagas] está todo o nosso histórico de projetos, de prestação de contas, projetos que submetemos, pareceres. É ali que a gente trabalha”, diz João Viola, pesquisador do Inca (Instituto Nacional do Câncer), no Rio de Janeiro.
“Há algum tempo o sistema não vinha bem, mas posso afirmar com certeza que nunca houve uma situação como esta. Não temos a menor ideia da perda, mas a questão não está transparente.”
Uma falha na área de tecnologia da informação derrubou os sistemas em 23 de julho.
O apagão, segundo informação oficial do CNPq, foi provocado pela queima de um dispositivo do controlador dos servidores onde as plataformas são hospedadas. Isso teria ocorrido durante a migração de dados para um novo servidor. O órgão demorou 15 dias para restabelecer completamente o acesso ao Lattes. Mas até agora não há previsão para restabelecimento da Carlos Chagas.
Segundo o CNPq, optou-se por migrar todos os dados, sistemas e serviços para um novo equipamento antes de restabelecer o acesso a essa plataforma, “para garantir mais segurança e estabilidade, e ainda ter uma solução definitiva”, afirmou o órgão em nota. A demora para resolver a situação seria devido ao processo de transferência dos dados.
O principal servidor do CNPq, atingido pela falha, estava fora da garantia e sem contrato de manutenção. Questionado, o órgão afirmou que um grupo de trabalho “atuará na avaliação criteriosa das condições que geraram o problema”.
O apagão dos sistemas ocorreu em cenário conhecido pelo governo. No relatório de gestão do CNPq de 2020, o órgão afirma que a “diminuição da capacidade dos sistemas de informações de apoio e execução do fomento” apontavam, “sem sombra de dúvidas”, para necessidade de melhorias.
Em setembro do ano passado, a necessidade de investimentos nas plataformas foi tratada em reunião do conselho deliberativo, a maior instância de poder decisório do órgão.
O CNPq gastou em TI, no ano passado, R$ 6,7 milhões. O montante equivale a 68% do recurso empenhado, segundo o mesmo relatório.
A agência federal afirmou que os valores dos serviços técnicos para o conserto ainda estão em negociação. O órgão disse que dispositivos usados teriam sido obtidos por doações de outros órgãos públicos que tinham equipamento sem uso.
Os recursos direcionados para o CNPq passam por enxugamento nos últimos anos, intensificado no governo Bolsonaro.
O conselho tem em 2021 o menor orçamento ao menos desde 2012, mesmo em valores nominais. A dotação atualizada do órgão para o ano é de R$ 1,2 bilhão -de 2013 a 2015, por exemplo, o orçamento executado superou R$ 2 bilhões por ano.
Também houve uma redução de 34% no número de servidores de 2015 a 2020. Agora, são 316 funcionários, contra 478 em 2015.
Apesar disso, o CNPq continua com papel de protagonismo na pesquisa brasileira.
No ano passado, 27.951 artigos científicos publicados tiveram financiamento da agência. Isso representa 40% da produção científica brasileira, segundo os dados indexados na base Web of Science e colhidos pelo conselho.
Em 2015, esse percentual era de 44,5%, mas, ainda assim, a proporção atual posiciona o CNPq como a maior agência de fomento do país.
A falha nos servidores, no entanto, impacta a atuação da agência.
“Qualquer atividade do CNPq passa pelos sistemas integrados às plataformas”, diz Roberto Muniz, diretor do Sindicato Nacional dos Gestores Públicos em Ciência e Tecnologia e presidente da Associação de Servidores do CNPq. “Já vão para 20 dias que CNPq não faz absolutamente nada.”
Goldenberg, da Fiocruz, conta que vê hoje uma situação inédita. “Tenho bolsa do CNPq há 50 anos, comecei com iniciação científica, fiz mestrado, doutorado, pós-doutorado, tive bolsa em produtividade em pesquisa, e jamais houve uma situação tão deplorável como a de agora”, diz.
“Ver o CNPq nessa situação é doído, porque ele é extremamente importante para alavancar o futuro do país”, afirma.
O CNPq nega que a falha tenha relação com a queda de orçamento. O órgão também garante que há backup de todas as informações das pesquisas e dos pesquisadores.
Fonte: O Tempo