Pela segunda vez consecutiva, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) acontecerá em meio à pandemia do coronavírus. A edição 2021 do exame será realizada nos dias 21 e 28 de novembro deste ano —é possível que, até lá, boa parte da população brasileira esteja vacinada, mas não há como garantir que a circulação do vírus estará sob controle no país.
Especialistas ouvidos pelo UOL apontam que, mesmo considerando um eventual cenário de melhora, há uma série de desafios para a realização do Enem 2021 —que envolvem não só a adoção de medidas sanitárias, mas também a insegurança psicológica dos candidatos que farão a prova. Muitos ficaram meses sem condições de estudo, já que o ensino remoto e a retomada das aulas presenciais acontecem de forma desigual no Brasil.
“Com a pandemia e o fechamento das escolas, vivemos um momento inédito de termos de construir políticas educacionais emergenciais. E não tivemos sucesso: milhares de estudantes estão excluídos dos processos de ensino e aprendizagem.
“Na época do Enem vão ser quase dois anos sem aula presencial, com ensino remoto sendo oferecido de forma muito díspar no país. Há ainda apreensões em relação à logística do Enem. São questões que acabam impactando a confiança do estudante que vai fazer a prova”, afirma Lucas Hoogerbruge, líder de relações governamentais do movimento Todos pela Educação.
Adiado para janeiro deste ano justamente por causa da pandemia, o Enem 2020 teve as maiores taxas de abstenção da história: dos mais de 5,5 milhões de inscritos, 51,5% não compareceram ao primeiro dia de provas, enquanto 55,3% não compareceram ao segundo.
O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão responsável pelo exame, optou por não garantir a isenção da taxa de inscrição —de R$ 85— aos candidatos que faltaram à última edição da prova por insegurança ou medo da covid.
A quantidade de inscrições confirmadas (isto é, após o pagamento da taxa) para o Enem 2021 despencou para 3,1 milhões, o menor número desde 2005.
Ex-presidente do Inep, a educadora Maria Inês Fini classifica a medida como “um erro fatal”. “É natural que todo mundo estivesse com medo de fazer a prova”, diz.
“Foi um erro não deixar quem teve isenção na última edição ter de novo agora, mesmo que a justificativa fosse apenas o medo de comparecer à prova, porque ela é absolutamente legítima e não precisa de atestado médico de ninguém.
A medida, segundo os especialistas, impacta principalmente os estudantes mais pobres e, portanto, deve trazer mais desigualdade para o acesso à educação no Brasil. Vale lembrar que o Enem é considerado a principal porta para o ensino superior no país, por possibilitar a disputa a vagas na universidade por meio de programas como o Sisu (Sistema de Seleção Unificada) e o Prouni (Programa Universidade para Todos).
Segurança
A garantia da adoção de medidas de segurança para evitar a disseminação do coronavírus também é vista com preocupação pelos especialistas.
Na edição realizada em janeiro deste ano, foi adotado um protocolo que previa, por exemplo, o uso obrigatório de máscara durante toda a prova, medida que será novamente utilizada de acordo com o edital do Enem 2021, e a redução do número de candidatos por sala. Mesmo assim, foram registradas aglomerações e quebras de protocolos.
“Um dos principais pontos que temos que saber do Inep é se as condições serão garantidas para todos fazerem a prova com segurança”.
“Hoje sabemos que, além dos protocolos tradicionais, como máscara e distanciamento, um dos principais elementos [de prevenção à disseminação do vírus] é a ventilação cruzada. Não podemos ter sala de aplicação de prova que não tenha uma janela para circular o ar, por exemplo. A lotação das salas e outras questões como essa foram difíceis na última edição”, pontua.
“Somente os lugares de prova cumprirem protocolos sanitários já é muito difícil”, concorda Pellanda. Ela lembra ainda que há especificidades que precisam ser garantidas, também com segurança, para candidatos que sejam portadores de deficiência.
“[Eles] precisam de acompanhantes para leitura da prova, por exemplo, no caso de cegos, ou para ajudar a ir ao banheiro. Há preocupação nossa e dos estudantes, novamente, de realizar a prova”, afirma.
Fini diz acreditar que o alto índice de faltosos no Enem 2020 não terá impacto na edição 2021 do exame. Na avaliação dela, é possível que a prova tenha “pouquíssima” abstenção, desde que haja um cenário mais positivo em relação à pandemia e que, consequentemente, passe mais segurança para os candidatos.
“Segurança é algo que você não tem só dizendo que vai ter medidas preventivas, de distanciamento. Segurança é um sentimento”, afirma.
É nesse sentido que, para Hoogerbruge, o Inep e o MEC (Ministério da Educação) devem atuar fortemente na divulgação das medidas a serem tomadas para a realização do exame.
“O principal aqui é comunicação, transparência, garantir que está tudo em ordem. Dar segurança a quem for fazer a prova. É preciso mostrar quantos locais de aplicação de prova existem, como isso evoluiu do passado, e mostrar que há uma série de protocolos a serem seguidos”, afirma.
Incentivo
Para além das medidas sanitárias a serem tomadas, os especialistas defendem ainda a necessidade de se incentivar os candidatos a fazerem a prova.
“Não há uma campanha incentivando. Isso é o que deveria ter agora: ‘você que se inscreveu, não perca a oportunidade, você tem a chance de mudar seu futuro’. Cadê?”, questiona Fini, que classifica como “lamentável” uma declaração recente do ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, de que a universidade deveria ser “para poucos”.
“Não depende só do Inep, está inserido em um contexto maior do ministro, que faz a gestão política —e que fala uma bobagem dessa como ouvimos agora. Acho que é esse ambiente maior que deveria cuidar de incentivar aqueles que já fizeram a inscrição a não faltar”, diz ela.
Para Pellanda, além de incentivar a participação por meio de campanhas, é necessário pensar também em ações afirmativas. “É preciso urgentemente investir na busca ativa e permanência dos jovens na escola, que é um dos motivos da exclusão escolar e da falta de continuidade nos estudos, assim como aprofundar o acesso ao ensino superior”, afirma.
“Nada disso é feito sem orçamento. O governo acha que se faz política pública com migalhas e que os estudantes não querem fazer a prova que pode garantir o futuro deles porque há ‘alarde da imprensa e de ativistas’. O estudante não se inscreve no Enem e falta à prova porque não há algum incentivo ou garantia de direitos, porque não há algum investimento. Isso precisa ficar bem claro”, pontua.
O UOL procurou o Inep para saber se o instituto adotará medidas práticas para evitar que a alta abstenção se repita no Enem 2021. Também foi questionado ao órgão quais medidas serão adotadas para garantir a segurança dos candidatos que compareçam às provas. O instituto, no entanto, não respondeu até a última atualização desta reportagem. Caso um posicionamento seja enviado, ele será acrescentado a este texto.