Governo Lula revogou portaria do fim do governo Bolsonaro que previa chamamentos que poderiam favorecer grandes grupos
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá o desafio de reformular a regulamentação sobre a criação de cursos de medicina no país em meio cenário de disputas judiciais, retomada do programa Mais Médicos e pressão de empresas educacionais de olho em um mercado lucrativo.
A nova gestão do MEC (Ministério da Educação) revogou na primeira semana do ano uma portaria editada no apagar das luzes do governo Jair Bolsonaro (PL) que trazia uma nova regulamentação do tema.
Dessa forma, fica valendo uma regra do final da gestão Michel Temer (MDB), em 2018, quando foi implementada uma trava de cinco anos para criação de novos cursos —o prazo se encerra em abril.
O ato do governo petista é um novo capítulo de um imbróglio que se arrasta há mais tempo, desde 2013. Quando o Mais Médicos foi criado, no governo de Dilma Rousseff (PT), a abertura de novos cursos de medicina foi condicionada a chamamentos públicos para atender determinadas cidades, onde havia uma suposta maior demanda por esses profissionais.
O governo Lula já anunciou que irá retomar o Mais Médicos. Não há detalhes sobre como a formação de novos profissionais será tratada nessa política.
Questionado, o MEC não informou o que planeja para o assunto. O ministro da Educação, Camilo Santana (PT), afirmou nas redes sociais que revogou a regra de Bolsonaro para os cursos de medicina por prudência, para que “seja feita uma avaliação criteriosa e segura dos seus termos”. Outra justificativa é que a medida de Bolsonaro não teria passado pela consultoria jurídica da pasta.
Em 2018, o argumento para a medida do governo Temer era a preocupação com a qualidade do ensino. O ato barrou a abertura do protocolo do MEC de autorização de novos cursos e também novos chamamentos públicos.
“Toda política pública ou lei que é costumeiramente discutida judicialmente tem defeito”, diz o advogado José Roberto Covac, consultor de grupos privados de educação superior.
Ao longo do governo Bolsonaro, o MEC manteve relação afinada com setores do mercado privado e ameaçou editar novas regras. Mas somente em 2022 o tema ganhou corpo na pasta, um grupo de trabalho foi criado e, finalmente, publicou-se a portaria, em 31 de dezembro —revogada dias depois.
De forma geral, essa portaria determinava interlocução dos novos cursos com o SUS (Sistema Único de Saúde) e mantinha as novas aberturas por chamamentos públicos, estratégia que divide empresas do setor. Esse modelo tende a favorecer grandes grupos, mais capitalizados.
O grupo mais favorável às regras criadas no governo Bolsonaro é a Anup (Associação Nacional de Universidades Particulares), entidade presidida por Beth Guedes, irmã do ex-ministro da Economia Paulo Guedes.
Foi a associação que levou ao STF (Supremo Tribunal Federal) uma ação que busca manter o modelo de chamamento do Mais Médicos. Uma outra ação na corte, proposta pelo Conselho de Reitores das Universidades, vai no caminho oposto e questiona essa previsão.
A judicialização sobre o tema, em que instituições conseguiram na Justiça dar andamento a seus processos, também é apontada como um problema na ação da Anup.
Do Mais Médicos, em 2013, até a trava de 2018, foram criadas 13 mil vagas. Já nos quatro anos seguintes, período do governo Bolsonaro com a medida herdada de Temer, o número de vagas aumentou em 8.522 (a maior parte em instituições privadas) —grande parte criadas após a judicialização do tema.
O mercado vê na medicina a maior aposta de lucro. Estima-se que um curso com 100 vagas valha cerca de R$ 200 milhões.
Isso ocorre tanto por causa das altas mensalidades dos cursos (a média é de R$ 8.462,61) —em contraste com um mercado que se expande na educação à distância, com baixos tickets médios—, quanto pelo amplo sucesso na ocupação de vagas.
Medicina tem a melhor taxa de ocupação de vagas no país, com índice de 96,6% em 2021, segundo dados oficiais. A evasão é a mais baixa, de 4% nos anos de 2017 e 2018, contra 19% em engenharia, 18% em direito e 16% em enfermagem.
“Agora, depois da pandemia, já há carência de médicos em grandes centros, e por que não permitir que projetos de qualidade possam dar entrada?”, questiona.
Enquanto a discussão não é concluída, a diferença regional do número de médicos no país permanece. A média de profissionais por mil habitantes no Brasil é de 2,4, próximo a alguns países ricos. Mas a taxa não pega as desigualdades regionais.
São 502.475 médicos atuando no Brasil, segundo o estudo do CFM (Conselho Federal de Medicina) com a USP (Universidade de São Paulo). Mas a presença de profissionais por mil habitantes vai de 3,7 no Rio de Janeiro a 0,8, no Maranhão, segundo um estudo de 2020 do Conselho Nacional de Educação.
Os números ainda escondem a concentração dos profissionais nas capitais, ressalta a entidade.
Fonte: Folha de S.Paulo